sábado, 10 de janeiro de 2009

 

Budismo de Nitiren – polêmicas e verdades

Paulo Stekel



Introdução

Como budista que somos, temos a obrigação de respeitar todas as linhagens. Como universalista, nos dispomos a respeitar todas as religiões e todas as formas de culto, das mais ortodoxas às mais alternativas e exóticas. Esse parece ser o caminho politicamente correto que muitos têm adotado nas últimas décadas. Não o vemos como inadequado. Pelo contrário, pode ser uma ótima forma de diminuir a violência global motivada ou incitada pela religião, como vemos em Gaza, Sri Lanka, Cachemira e em muitos outros lugares. Há que se abraçar mais do que litigar, dizemos nós. Mas, quem escuta o óbvio? Somente aqueles que se dispõem a praticar.

Acostumados que somos às polêmicas envolvendo as várias tendências cristãs, que permeiam nossas vidas ocidentais, raramente nos damos conta de que picuinhas e rusgas religiosas existem em praticamente todos os cultos do mundo. A coisa fica séria quando um deles pensa (e diz) que sua verdade é superior à dos demais. Nenhuma das grandes religiões escapa ou escapou em algum momento de sua História de tal tipo de afirmação disparatada. Não faz muito o Papa Bento XVI reafirmou a supremacia do Cristianismo Católico Romano sobre todos os demais e sobre as outras religiões.

Desde a época em que nos convertemos ao Budismo (o Tibetano, embora, para o Buda, só haja um Budismo: o que conduz ao Despertar), lá pelos idos de 1995, ouvimos falar de uma outra forma de prática budista, repudiada por muitos como sendo pseudobudista ou não budista: o Budismo de Nitiren. Um lama tibetano chegou mesmo a nos afirmar serem seus adeptos fanáticos proselitistas desavergonhados. Como o Budismo não é proselitista, via de regra, isso nos chocou um pouco. Durante muitos anos não soubemos (e nem nos interessamos em saber) absolutamente nada sobre Nitiren, sobre as escolas que o seguem, seja a Soka Gakkai ou outras. A Soka Gakkai, aliás, era a mais perigosa, segundo o lama que nos advertia na época... Mas ela não é uma religião... é apenas uma ONG composta de membros leigos! O que teria de errado?

Às vezes o desconhecimento é o maior aliado do medo, do preconceito e da agressão, necessariamente nesta ordem. A regra de ouro que seguimos há anos é esta: se um assunto não lhe prejudica o sono e você consegue dormir bem sem se aprofundar nele, tudo bem, esqueça. Mas se algum dia ele lhe incomodar, vá atrás e se informe, para não emitir opinião preconceituosa que venha a interferir negativamente no caminho escolhido pelos outros. Foi o que fizemos quando o assunto “Budismo de Nitiren” começou a cercar-nos, seja através de amigos, de reportagens ou de dúvidas dos leitores.

Nitiren: todos podem se iluminar!

Esta afirmação é a base do Budismo de Nitiren Daishonin, sendo também a essência do Budismo Mahayana, a maior das divisões do Budismo, caracterizada pelo espírito de benevolência e de altruísmo.

Mas o próprio Budismo Mahayana possui inúmeras divisões, a que alguns se referem incorretamente como “seitas”. Na verdade, tudo é uma coisa só: Budismo. As diferenças não alteram isso. As bases são as mesmas. Uma das mais importantes escolas mahayana da China foi fundada por Tientai (538-597), a Escola Tendai. Esta escola ensina que o Sutra de Lótus é o mais elevado de todos os sutras Mahayana e que todas as coisas, animadas e inanimadas, possuem um potencial adormecido para o Despertar Último.

O Budismo de Tientai chegou ao Japão no Séc. IX, e mais tarde, no Séc. XIII, Nitiren Daishonin estudou no centro da escola Tendai no Japão, entendendo que o Sutra de Lótus constitui a essência de todo o Budismo. Então, começou a pregar o que havia descoberto, nascendo o que hoje se chama “Budismo de Nitiren”.

Para Nitiren, tudo está sujeito a uma única lei universal. Compreendê-la é libertar-se. Nitiren Daishonin definiu esta lei universal com o mantra Nam-myoho-rengue-kyo, uma fórmula que representa o fundamento do Sutra de Lótus e é conhecida como Daimoku. Ele é inscrito num pergaminho, o Gohonzon, como lembrete dos ensinamentos sobre a lei universal aqueles que, praticando o mantra, desejam atingir a Iluminação.

Saber um pouco da vida de Nitiren é importante para se entender como as doutrinas ensinadas por ele têm sido adotadas por tanta gente no Ocidente.

Nitiren Daishonin, ao contrário de Sakyamuni, que era filho de um rei, era filho de pescadores. Como os pescadores tiravam a vida de seres para sobreviver, eram desprezados na sociedade da época. Nitiren começou a estudar Budismo aos doze anos, tendo percebido logo várias contradições entre os ensinamentos. Isso o levou a procurar uma resposta definitiva para o sofrimento humano. Depois de muito estudo e contemplação, chegou (em 1253) a suas próprias conclusões, as quais passou a apresentar sistematicamente. Em especial, declarou que os verdadeiros ensinamentos do Budismo são encontrados apenas no Sutra de Lótus, que apresenta os ensinamentos dos últimos oito anos de vida do Buda Sakyamuni. Eis o ponto de maior choque com o Budismo Mahayana como um todo... Ao expôr pela primeira vez o Nam-myoho-rengue-kyo em 1253, proclamando que a devoção e a prática do Sutra de Lótus eram a única forma correta de Budismo para a época atual, Nitiren desagradou a muitos e ofendeu a outros tantos... Mas também conquistou muitos seguidores, especialmente entre a classe dos samurais.

Primeiros anos de ensino: perseguição e fé

Nitiren foi muito controverso, e essa controvérsia persiste em muitas escolas que seguem seus ensinamentos ainda hoje. O motivo principal de controvérsia é o fato dos praticantes do “Budismo de Nitiren” acreditarem serem os únicos que seguem a forma correta de Budismo, uma convicção que vem do próprio Nitiren. Poderíamos compará-lo a um Reformador, um “lutero” budista, mas não é o caso. Ele não queria reformar as escolas. Na verdade, queria que o governo deixasse de sustentar as outras escolas budistas e que as pessoas as abandonassem, pois se convencera de que seguiam ensinamentos errados. Essa atitude pode ser encontrada na origem de muitas cisões religiosas pelo mundo, mormente as cisões cristãs...

A conseqüência óbvia da atitude de Nitiren foi a perseguição, que veio tanto das escolas budistas populares da época como do governo que as protegia. Ele mesmo declarou que era essencial que "o soberano reconheça e aceite a única forma verdadeira e correta de Budismo" e a única maneira de "atingir paz e prosperidade para a terra e seu povo e dar um fim ao sofrimento". Foi uma atitude radical, com certeza, e na contramão do que se busca atualmente no campo religioso: complementaridade e não sectarismo! Devemos aprender que não se pode contrapôr nem misturar “fés”, apenas praticar uma e respeitar (além de estudar) as demais... Isso é muito mais produtivo e pacífico.

Da mesma forma que os antigos Profetas de Israel, Nitiren atribuiu a ocorrência de fomes, doenças e desastres naturais da sua época ao fato das pessoas não seguirem a “forma verdadeira e correta de Budismo”. Isso realmente beira o proselitismo, algo que o Buda não ensinou. Por isso, Nitiren foi atacado, exilado, seqüestrado e quase assassinado...

Depois de passar por tudo isso e sobreviver, dizem seus seguidores, Nitiren teria descartado sua identidade provisória de simples sacerdote e revelou-se como a reencarnação do Bodhisattva Jogyo ou como um Buda, conforme o que aceite cada escola. Seguiram-se três anos de banimento para a ilha de Sado, onde Nitiren escreveu tratados importantes que descrevem sua doutrina.

Terminado o banimento, Nitiren exilou-se no Monte Minobu, onde montou um templo e continuou escrevendo (mais de 700 obras!), pregando e treinando discípulos até a morte, em 1282.

O efeito Nitiren

Após a sua morte, os ensinamentos de Nitiren foram interpretados de diversas maneiras por seus seguidores, o que em geral acontece com todos os líderes religisos. Por isso, o Budismo de Nitiren possui diversas linhas e escolas, sendo as mais importantes a Nitiren Shu e a Nitiren Shoshu, cada uma com suas particularidades. A maior (e mais polêmica) diferença está se a escola considera Nitiren como O Verdadeiro Buda ou O Buda Original, como é o caso da Nitiren Shoshu e da Soka Gakkai, ou se o consideram como um grande mestre, como é o caso da Nitiren Shu. Mas todas afirmam que o Sutra de Lótus é o sumum bonum do Budismo, em detrimento de todos os demais sutras, que são considerados verdades parciais. Mas, qual texto, de qualquer religião que seja, poderia conter A Verdade Total??? Como o Sutra de Lótus, ao contrário dos demais, poderia ter sido ensinado pelo Buda a partir de um ponto absoluto, se seus seguidores ainda estão imersos no relativo??? Como podem entender o absoluto, então?

Essa atitude nos parece contrária à visão do Budismo Tibetano, por exemplo, no qual não se exclui sutras ou demais textos, mas apenas se inclui. O Budismo Tibetano estuda não só seus próprios textos, mas todos os demais textos do Mahayana (em tibetano, chinês e sânscrito) e imprescindivelmente os textos em páli do Budismo Theravada conhecidos como “Tipitaka”, quase uma “bíblia páli”. Excluir todos os demais em detrimento de um único texto parece uma atitude temerária. Mas é o direito de Nitiren e de seus seguidores e o reconhecemos. Mas também podemos nos reservar o direito de pensar diferente...

Há ainda três pontos a considerar nos ensinamentos de Nitiren. Um, é a a utilização de um único mantra (o Daimoku), o Nam-myoho-rengue-kyo, que, numa tradução simples, significa "Devoto-me à lei mística do Sutra de Lótus", mas cujas sílabas desdobram-se em muitos significados. Rezar apenas este mantra conduziria ao Despertar. Isso é uma prática de fé, não de conhecimento. Mas isso também não é um problema.

O segundo ponto essencial do Budismo de Nitiren é a possibilidade de se atingir o Estado de Buda na vida atual. Ainda que seja possível, mas virtualmente difícil, o Budismo Tibetano também possui este ensinamento. Não custa tentar... Afinal, como saber até onde já chegamos na busca por sabedoria nas vidas anteriores?

O último ponto ensina, através da disseminação dos ensinamentos (chakubuku), a se buscar a paz mundial (chamada kossen-rufu). Nunca a paz mundial foi tão bem vinda! Uma prática religiosa ter a paz mundial como uma de suas bases essenciais é algo realmente louvável.

Nitiren: um Buda ou O Buda???

Em algumas escolas, Nitiren ou Nichiren (1222-1282), também chamado de Nichiren Daishonin, acabou sendo elevado à condição de Buda original da era de Mappô. Assim o consideram os membros da Nitiren Shoshu e da associação de leigos, a Soka Gakkai (representada no Brasil pela BSGI, uma ONG). Mas escolas como a Nitiren Shu consideram Nitiren como um patriarca, mas não deixam de seguir o Buda Shakyamuni.

Para a Escola Nichiren Shoshu, uma ordem monástica, conforme a predição do Buda Sakyamuni revelada no Sutra de Lótus, na época denominada Era do Fim do Darma – iniciada dois mil anos após o falecimento do Buda Sakyamuni - Nichiren Daishonin apareceu como o Verdadeiro Buda para a salvação dos seres. Nichiren ensina que todos que acreditarem no Gohonzon (objeto de adoração), a essência do Sutra de Lótus, e recitarem o Nam-myoho-rengue-kyo, poderão atingir a condição de Buda.

Apenas para esclarecer, Soka Gakkai é a designação de uma organização não governamental (ONG) que tem como objetivos o estabelecimento da paz, da cultura e da educação. Tudo isso com base no Budismo de Nitiren, religião da qual seus integrantes são praticantes leigos. Possui aproximadamente 15 milhões de membros no mundo. Até o início dos anos de 1990, a Sokka Gakkai era associada à Escola Nitiren Shoshu, mas graves divergências as separaram em definitivo. Por causa disso, atualmente é uma organização laica, sem uma ordem monástica associada. É liderada desde 1960 por Daisaku Ikeda, conhecido filósofo, escritor, fotógrafo e poeta, responsável por seu rápido crescimento no mundo. No Brasil é representada pela BSGI (Brasil Soka Gakkai Internacional).

A Escola Nichiren Shu chama Nitiren de Nichiren Shonin. Para ela, Nichiren foi um grande professor e reformador, que rejeitou o elitismo do budismo japonês e o restaurou como uma prática popular, entendendo o Sutra de Lótus como o ponto culminante dos ensinamentos de Buda. Para esta escola, Nitiren não é um Buda, nem O Buda Original, mas um grande mestre. Por isso, o diálogo da Nichiren Shu com outras escolas budistas, como as do Mahayana e o Theravada tem se mostrado no mínimo viável.

Algumas críticas ao Budismo de Nitiren

Conversando com várias pessoas pela Internet, em Redes Sociais, recebemos vários relatos e críticas ao chamado “Budismo de Nitiren”, bem como algumas defesas. Só para exemplificar, eis alguns argumentos (os nomes são fictícios, por insistência de seus autores):

“Fui numa reunião e não gostei. Ali pregam que Sidarta não é o verdadeiro Buda. Dizem ainda que nos textos Sidarta apontou que Nitiren viria esclarecer o mundo sobre o verdadeiro budismo após 2000 depois de sua morte de sidarta.” [Arlete]

“A Sokka Gakkai prega que Nitiren é a encarnação do Buda Gautama e que veio para restaurar o verdadeiro Budismo. (...) Já visitei vários grupos desta seita e constatei muita ignorância, arrogância e ingenuidade em relação aos ensinamentos de outras escolas budistas, que para eles são desencaminhadores do verdadeiro budismo.” [Renan]

“Verdadeiro Budismo? Acho que a frase está mal colocada. Nunca vi essa abordagem. Existem discussões filosóficas entre as eEscolas, mas não chega ao ponto de uma ser melhor que a outra. Sinceramente não entendi.” [Bira]

“O que já discuti diversas vezes foi a falta de ética dos membros da Nitiren nos seguintes fatos: Ao falar "o verdadeiro Budismo" deixando a entender que os outros são falsos; ao dizer que o mantra deve ser usado por todos desconsiderando que todas as outras escolas não usam esse mantra; ao dizer que o Sutra de Lótus é o mais importante do Budismo e que todos os outros devem ser estudados com base nele, o que desrespeita as outras escolas que não acreditam nesse Sutra. Não estou falando que é para os membros da Nitiren deixarem de praticar ou acreditar no que diz essa filosofia. Mas que o que ela prega é bastante particular no Budismo, portanto entra em conflito com as outras escolas.” [Gilvan]

“Nitiren Daishonin não é uma escola budista porque não possui os Quatro Selos do Dharma [ver nota 1]. Nenhuma escola budista tradicional reconhece esta seita como budista. Nem o Theravada, nem o Mahayana, nem o Vajrayana. Nenhum grande mestre budista faz sequer menção a este pretenso "budismo", que em verdade desencaminha as pessoas da verdadeira prática budista, e apresenta obstáculos como se fossem caminho de iluminação (culto a personalidades, adoração de objetos, desconhecimento das Quatro Nobre Verdades).” [Antônio]

Nota 1: Os Quatro Selos do Dharma são - Todos os fenômenos compostos são impermanentes; todos os fenômenos contaminados são insatisfatórios; todos os fenômenos são vazios e desprovidos de realidade intrínseca; o Nirvana é a verdadeira paz.

“Nitiren não é budismo. Qual é a outra linhagem budista que é acusada com tanta freqüência de não ser budista pelos próprios budistas e por não-budistas bem esclarecidos? (...) todos já ouvimos praticantes de todas as linhagens afirmar que Nitiren viola os mais básicos preceitos budistas: não possui os Quatro Selos (vício fundamental); não propaga as Quatro Nobres Verdades [ver Nota 2]; não prioriza o treinamento da mente; pratica culto à personalidade e ao ego; pratica materialismo descaradamente; pratica idolatria (adoração de objetos).” [Flávia]

Nota 2: As Quatro Nobres Verdades, de acordo com os textos canônicos, são a Verdade do Sofrimento, a Verdade da Causa do Sofrimento, a Verdade da Extinção do Sofrimento e a Verdade do Caminho de Oito Aspectos para a Extinção do Sofrimento.

Esta é a opinião das pessoas. Deve haver verdades e equívocos nela. Ninguém agrada a todos, diz o próprio povo. Por isso solicitamos ao Monge Hakuan (Antonio Carlos Rocha) uma defesa mais consistente do Budismo de Nitiren, e ele nos enviou prontamente um artigo esclarecedor. Monge Hakuan tem escrito vários artigos para a Revista Horizonte – Leitura Holística, e ele mesmo é seguidor de Nitiren, Gatukô (auxiliar sacerdotal) da Escola Honmon Butsuryu Shu, que considera Nitiren (que ele escreve Nichiren) como um grande mestre. Depois de lermos o que ele tem a dizer, reflitamos cada um de nós sobre o assunto e, se conseguirmos dormir sem nos incomodarmos com ele, ótimo. Caso contrário, aprofundemos nossos estudos, para não cair no preconceito e na ignorância de muitos. Segue, logo abaixo, o artigo de Monge Hakuan:

Nichiren – O Lótus Sol

Hakuan (Antonio Carlos Rocha) - Gakutô (Auxiliar Sacerdotal do Budismo Primordial HBS)



No âmbito das muitas linhagens budistas que conhecemos hoje em todo o mundo, as linhagens Nichiren são, curiosamente, muito amadas por uns e detestadas por outros. Incluo-me entre os primeiros. Sou daqueles que muito amam estudar, pesquisar e praticar quase todas as linhagens budistas que me são possíveis, como um leitor entusiasta que fica maravilhado diante de magnífica e diversificada biblioteca.

Aprendi muito cedo com o Buda Sakyamuni que a beleza e importância da floresta está na diversidade. Podemos afirmar que o Budismo é atualmente um Ecossistema de escolas, veículos, linhagens, sub-linhagens, ramos, filosofias e pelo visto, não vai parar de crescer, pois isso é próprio da vida.

O parágrafo acima me fez lembrar que, em artigo anterior, já publicado nesta ótima Revista Horizonte - Leitura Holística, citei o Venerável Anagárika Govinda, aprovando as novas interpretações e vivências budistas.

A grande questão é o chamado “Budismo Nichiren” que nasceu no Japão, na Idade Média, e que hoje abriga muitas escolas (há até quem afirme a existência de 40 linhagens). Alguns budistas de outros ramos afirmam que o Budismo Nichiren não é Budismo, ou então chamam de “Budismo Evangélico”. Esquecem-se, estes queridos e iluminados irmãos que se há Budismo Teravada, Budismo Zen, Budismo Terra Pura, Budismo Chan, Budismo Tibetano, Budismo Chinês, Budismo Coreano, Budismo Norte-Americano, já se fala até em Budismo Brasileiro e etc., por que não pode haver um Budismo Nichiren?

Em primeiro lugar é preciso notar que o próprio Sakyamuni esclareceu a existência de muitos Budas, antes e depois dele. Logo, quando a linhagem a qual pertenço, Budismo Primordial HBS, reverencia o Buda Sakyamuni e afirma que o Buda Primordial é o Adhi Buddha e que esta energia primeva da vida incorporou-se em Sidarta Gautama, de forma mediúnica, e que portanto, se quisermos, podemos considerar os termos Deus e Buda Primordial como sinônimos, estes irmãos budistas, de outras linhagens, discordam e dizem que isso não é Budismo.

Se Sidarta disse que houve muitos Budas antes dele e que após ele viriam muitos outros Budas, qual é o problema de também chamarmos Nichiren de Buda? A linhagem Soka Gakkai afirma que Nichiren é o Buda Original e Sakyamuni, o Buda Histórico. Ora, é Original porque ele fez uma interpretação original, diferente em alguns pontos do Ensinamento de Sakyamuni. Original no sentido de criatividade.

Constato então que eles, os irmãos budistas que discordam, com todo o respeito escrevo isso, estão presos, apegados a conceitos antigos, ortodoxos e não conhecem, novamente com todo o respeito, as escrituras budistas de uma forma mais ampla. No citado artigo que nos referimos acima, o Venerável Anagárika Govinda, afirma que, mesmo um alimento, congelado por muito tempo no freezer, vai precisar de um tempero atualizado, de forma que o sabor ganhe o merecido destaque. Ainda nesse mesmo artigo citamos um trecho do Mahaparanibhanasutta ou “O último sermão de Buddha”, dentro da tradição ortodoxa Teravada onde, textualmente Sidarta declara que, se a ordem quiser (a Sanga), após o desencarne dele, poderá alterar todos os preceitos menores. E comentamos que os preceitos maiores são os três tesouros: o Buda, o Darma e a Sanga e os menores os demais aspectos.

Mas, se o Budismo que os seguidores de Nichiren praticam refere-se a um Buda anterior a Gautama, não há motivo para tanta polêmica. Lembro que, certa feita, conversando com uma conceituada monja no Rio, da tradição Terra Pura japonesa, ela me disse que as imagens de Buda que tem nos altares dos templos Terra Pura de sua linhagem, em todo o mundo, não são de Sakyamuni, que geralmente aparece sentado na clássica postura de meditação, mas sim, do Buda Darmákara, que viveu bem antes de Sidarta. E Darmákara sempre aparece nas estátuas e imagens de pé, e nunca sentado e é por isso que, em geral, nos templos Terra Pura, existem bancos e cadeiras comuns e não as tais almofadas de outras tradições.

O mesmo acontece com as seis linhagens Nichiren presentes no Brasil. Existem bancos e cadeiras nos templos, como se fosse uma igreja. Talvez a única exceção à regra, seja o nosso núcleo no Rio, que por funcionar em uma academia de yoga, tem almofadas sobre pequenos pedaços de carpetes. Como, aliás, era na antiguidade japonesa, quando todos sentavam em tatames.

No Brasil temos as seguintes linhagens do Budismo Nichiren:

Budismo Primordial HBS – Honmon Butsuryu Shu = www.budismo.com.br (na capital carioca nós chamamos de HBS-Rio, ou seja Herdeiros do Buda Sakyamuni na Cidade Maravilhosa = http://budismoprimordialrio.blogspot.com);

Soka Gakkai = www.bsgi.org.br;

Risho Kosei Kai = www.rkk.org.br;

Nichiren Shu = www.nichirenshu.org.br;

Nichiren Shoshu = www.ns.org.br;

Reiyukai = www.reiyukai.or.jp (é o site oficial em inglês; no Japão; há um link em espanhol).

Além dos sites oficiais, há vários sites não oficiais e blogues autônomos, como o meu.

Em inglês há um site ótimo: www.nichirenscofeehouse.net. De lá o leitor encontra links para diversas linhagens históricas e tradicionais, além de muitas do Budismo Nichiren em todo o mundo; há até grupos budistas nichiren independentes. Veja também outro site muito bom: www.nichirenshueuropa.org (em várias línguas).

A reforma religiosa que Nichiren promoveu no Japão foi tão importante que até hoje influencia direta ou indiretamente diversas correntes religiosas neobudistas, não budistas, xintoístas, neoxintoístas e afins como Seicho-No-Ie, Igreja Messiânica, PL – Perfeita Liberdade, Sukyo Mahikari, etc. Todas têm altares semelhantes ao Gohouzen com inscrições em caracteres chineses ou nipônicos. Inclusive, as muitas linhagens de Reiki que percorrem hoje o Ocidente, lembram os sinais e os ideogramas que Nichiren inscreveu em seu Gohonzon. Por exemplo, a linhagem a qual pertenço, HBS, tem a prática da água fluidificada que os espíritas muito usam.

Nos altares de algumas linhagens do Budismo Nichiren existem imagens de Sidarta, em outras não, em algumas existem só imagens de Nichiren, em outras não, em algumas existem só um quadro ou mandala com caracteres nipônicos ou chineses explicitando o mantra Namu Myou Hou Ren Gue Kyou (que significa “Eu me refugio no Buda Primordial”) e a presença dos muitos Budas, Bodhisatvas, Mahasatvas e altos seres celestiais afins.

Não vemos problema nessa não existência de imagens de Sidarta Gautama; o próprio Sakyamuni, desde seus primeiros pronunciamentos no cânon páli, nunca fez questão de ser representado por uma estátua, e foi justamente isso que fez com que Nichiren não desse muita importância ao uso de imagens. Talvez por isso, muitos nos rotulam como “budistas evangélicos”, visto que os evangélicos do cristianismo não são afeitos às imagens. E também porque a jovem linhagem, Soka Gakkai, fundada em 1930, utiliza métodos de conversão semelhantes aos pentecostais.

Nichiren tinha uma profunda e reverente admiração por Sakyamuni e em função disso, compreendendo que ele foi um ser preparado e escolhido pelo Buda Primordial para nos revelar o Sutra Lótus, então preferiu inscrever em um pergaminho a reverência a todos os Budas, bodhisatvas etc, como já citamos. É importante frisar que ele não escreveu os nomes no pergaminho, mas inscreveu e por isso este sagrado pergaminho é chamado de Gohonzon e é isto o que temos em nossos altares. Os altares têm o nome de Gohouzen. O pergaminho é como se fosse um diploma, um cartão de banco ou de crédito, uma senha, e assim, todo iniciado tem em casa uma cópia deste pergaminho que também é conhecido como mandala.

Podemos afirmar que em quase todos os países do mundo há um pequeno grupo de praticantes que seguem alguma linhagem inspirada ou em Nichiren ou no Sutra Lótus e seguem o sagrado mantra já citado.

Uma das curiosidades deste tipo de budismo é que ele se reúne com mais freqüência nas casas, nas residências, em pequenos grupos e só eventualmente nos templos.

Vejamos um bom exemplo do preconceito que cerca os nichirenistas. No ótimo livro publicado no Brasil pela Editora Cultrix, “Budismo – uma introdução concisa”, os renomados especialistas norte-americanos em religião, Huston Smith e Philip Novak, ao longo de 208 páginas falam muito bem de diversas correntes, linhagens, veículos, etc. Mas o espaço dedicado a Nichiren é ínfimo, nada mais que 20 linhas. Ora, pensamos que os referidos autores não tiveram uma atitude imparcial, conforme recomenda uma pesquisa acadêmica séria. Só 20 linhas para falar de um conjunto de escolas, sub-escolas, interpretações que abrigam milhões de praticantes em todo o mundo?

É comum também pessoas que não conhecem a vida e a obra de Nichiren afirmarem que o significado do mantra é apenas “Louve o Lótus da Boa Lei”, como sugerem os citados autores na página 135 do referido volume. A postura é semelhante a uma pessoa que, não sabendo do que trata a astronáutica, tece considerações, definições e juízo de valor sobre a arte de enviar foguetes interplanetários para investigar o cosmo.

Talvez, toda esta celeuma tenha sua origem no seguinte: Nichiren (1222-1282) era uma monge politicamente bem acordado, um monge militante, revolucionário verbalmente falando, e mais de uma vez afrontou os poderes constituídos dizendo verdades aos poderosos. Conclusão: foi preso e condenado à morte por decapitação. Mas há uma história interessante que muitos afirmam ser lenda. Na hora do martírio, em praça pública, o carrasco não teve coragem de cortar a cabeça do sacerdote Nichiren. Nos céus apareceram sinais estranhos, houve trovoada, raios, a Terra tremeu, etc. Então, os algozes decidiram enviá-lo para o exílio. Anos depois voltou com a anistia.

Há uma outra história também de que em alguns dos textos escritos por Nichiren ele criticou o Budismo Zen e o Budismo Terra Pura. No primeiro caso é porque ele tinha uma devoção muito grande ao Buda Sakyamuni e mesmo tendo sido praticante e estudioso do Zen, não conseguia entender ou aceitar muito bem a irreverência e iconoclastia das linhagens zen que, às vezes, até recomendam “matar” o Buda, não respeitar a hierarquia sacerdotal, queimar as imagens do Buda, etc. Claro que isto é uma linguagem simbólica. O outro aspecto é que, contam, praticantes da Terra Pura, certa feita queimaram a cabana onde morava Nichiren, porque ele havia criticado os chefes e fundadores da linhagem Terra Pura. Então, alguns seguidores de Nichiren fizeram o mesmo e queimaram um templo da Terra Pura. E assim, hoje, ficamos sem saber quem iniciou a briga... Uns dizem que é um, outros dizem que é o outro.

Nessa época havia também muita corrupção no clero budista, que estava se utilizando das benesses do poder governamental em detrimento do povo. E Nichiren foi veemente com eles. Assim, nosso Patriarca “Nini”, fugiu ao padrão de que monge é sempre bonzinho, caladinho, bonitinho, arrumadinho, só meditativo e não fala nada diante das mazelas dos poderes corruptos e seus apaniguados.

Imparcialmente falando, Nichiren foi muito rude com as linhagens Zen e Terra Pura; a meu modo de ver, jamais deveria ter escrito isso, pois esqueceu da compaixão que Sidarta sempre ensinou. Ele poderia até discordar educadamente dos poderes governamentais da época, sem perder as estribeiras. Parece que morreu assim, meio brigão, valentão, verbalmente falando. Mas o que não faz sentido, hoje, novamente, na minha maneira de ver, é ficarmos nós brasileiros, reproduzindo uma briga da Idade Média japonesa, que não tem nada a ver conosco, tupiniquins, com a nossa realidade em pleno século XXI, e sim que o acontecido foi um fato local, isolado, dentro da belíssima história do budismo mundial. Com todo o respeito e reverência penso que estão equivocados os brasileiros nichirenistas quando afirmam que só o Budismo Nichiren está certo e os outros budismos estão errados; da mesma forma, discordo respeitosamente dos praticantes brasileiros, das demais denominações budistas, quando afirmam que Budismo Nichiren não é Budismo.

Quanto a afirmar que o Budismo Nichiren é Budismo Evangélico, não vejo problema nenhum, pois nada tenho contra os evangélicos cristãos, nem contra qualquer outra religião ou filosofia. Não me sinto diminuído ou agredido quando um budista de outra linhagem estranha nossa afirmação de que o Budismo Nichiren é um Budismo de Fé e vemos os vocábulos Deus e Buda como sinônimos, aliás, o nome oficial da linhagem a qual pertenço é Religião Budista Primordial - HBS.

Poderia listar ainda diversas outras muito bonitas linhagens Nichiren que não estão presentes no Brasil, mas por motivos de espaço recomendo o site em inglês www.lotus.net. De lá há um link para uma linhagem Nichiren 100% pacifista, ecumênica e inter-religiosa: http://www.niponzanmyohoji.org. Seu fundador foi o grande e Venerável Mestre japonês Nichidatsu Fujii Guruji (1885-1985). O último nome “Guruji” era a forma carinhosa como o Mahatma Gandhi chamava Nichidatsu. O monge japonês Fujii andava pelo mundo tocando um pequeno tambor do Darma do Buda, conforme ensinado por Nichiren e viveu durante três anos, na Índia, no ashram do Mahatma Gandhi, durante as lutas de libertação contra o Império Colonial Britânico. Diariamente pela manhã, juntos recitavam as orações de Gandhi inspiradas no Bhagavad Gita, no Evangelho de Jesus e nos Ensinamentos de Nichiren, através do Sagrado Mantra citado. Portanto, o exemplo de Gandhi, de não-violência ativa, tem muito de Nichiren.

Um outro grande mestre e monge budista Theravada, que ficou conhecido como o Gandhi do Camboja, também morou no ashram e acompanhava o Mahatma chamando Nichidatsu de Gurujii. Maha Ghosananda, o Gandhi do Camboja, foi indicado quatro vezes para o Prêmio Nobel da Paz. Portanto, nichirenistas ou não nichirenistas, a convivência pacífica e harmoniosa é possível e recomendável.

Recomendo dois ótimos livros: o primeiro, de autoria de Nichiko Niwano, atual presidente mundial da linhagem Risho Kosei Kai, que está presente no Brasil há 30 anos, “O Caminho Interior”, Editora Cultrix, 1996. E o segundo, de autoria do pai de Nichiko, Nikkyo Niwano, fundador da referida linhagem: “Shakyamuni Buddha – uma biografia narrativa do Buda histórico”, publicado pela editora católica Cidade Nova, em 1987, pertencente ao Movimento dos Focolares. Aliás, em 1979, o Vaticano outorgou a Nikkyo o “Prêmio Templeton” por motivos de aproximação ecumênica e inter-religiosa com diversos segmentos budistas e cristãos.

Ryuho Okawa, fundador e mestre da linhagem Ciência da Felicidade, uma espécie de Budismo Mediúnico, afirma em um de seus vários livros que Nichiren errou ao condenar as linhagens Zen e Terra Pura, mas que hoje, nas esferas celestiais, onde vive, é um Espírito de Luz e já se arrependeu do que escreveu na Idade Média. Logo, os praticantes hoje, devem também perdoar o Mestre Nichiren pela imprudência nas críticas. Veja o site em inglês (há link em português): www.kofuku-no-kagaku.or.jp.

Contudo, é bom frisar, que a Soka Gakkai tem até um partido político no Japão, ou seja, aproximaram política partidária com Nichiren, o subversivo de sua época. Contou-me um praticante da SGI – Soka Gakkai International que a intransigência de sua linhagem era em função da estreita ligação com a ex-radical Nichiren Shoshu, mas que, desde 2001, estão devidamente separadas, autônomas e independentes e que a Soka está cada vez mais light.

Assim seja!

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